Lenda do boto dá vida ao Sairé, em Alter do Chão
Uma celebração de raiz indígena, que passou pelas mãos dos missionários da Companhia de Jesus a partir do século 17 e hoje compartilha características religiosas e profanas. Narra-se assim a história da Festa do Sairé (ou Çairé, originalmente), realizada todos os anos na primeira quinzena de setembro em Alter do Chão, vila criada em 1758 a partir da missão católica Nossa Senhora da Purificação, instalada na aldeia dos indígenas Borari, na região do rio Tapajós.
Hoje, Alter do Chão faz parte de Santarém, no oeste do Pará, e o Sairé local é considerado o único sobrevivente entre os demais festejos realizados em outras antigas missões jesuíticas. Não à toa, sustenta o título de maior evento folclórico da região tapajônica. Antes da chegada dos jesuítas à Amazônia, vindos com a missão de catequizar os povos nativos da floresta, considerados pelos católicos europeus como seres “sem alma”, os Borari celebravam as crenças com danças de roda e cantos, em um típico baile indígena, ou puracê.
Com o intuito de inserir as tradições católicas nas festas dos silvícolas e acelerar o processo de catequização, os missionários passaram a incorporar elementos da Igreja no puracê. Surgiu, então, a representação da Santíssima Trindade, na qual Pai, Filho e Espírito Santo são simbolizados por um arco confeccionado no formato da proa de um barco, a Arca de Noé relatada no Dilúvio. Na ponta do estandarte, se destaca a cruz maior em homenagem ao Deus católico. À dança dos indígenas são incorporados cantos melancólicos, procissões e orações em louvor aos ícones da religião recém-chegada da Europa. Assim, o puracê passou a fazer parte dos rituais promovidos pelos missionários católicos em louvor a imagens como a de Nossa Senhora da Saúde (ou da Purificação), proclamada pelos catequizadores a padroeira de Alter do Chão.
Ainda que as crenças e os ícones da Igreja Católica não faziam sentido e tampouco tinham significado para os indígenas, a marca do domínio religioso dos colonizadores foi definitivamente impressa nas tradições indígenas de celebração aos elementos e seres da natureza. Ao longo do tempo, à medida que a Amazônia foi povoada e surgiu a
figura do caboclo como habitante da floresta, outros rituais foram agregados ao Sairé, entre novas danças e folguedos, convertendo a festa em uma grande celebração popular e folclórica da região amazônica. A Igreja Católica, porém, não aceitou a presença desses ritos “profanos”, os quais foram conquistando mais espaço entre a população da região.
Lenda do boto
Em 1943, a Igreja decidiu proibir a realização da Festa do Sairé, resgatada pelos moradores de Alter do Chão apenas 30 anos depois, em 1973. Ao ganhar vida novamente, o evento preservou menos as características religiosas do que as tradições populares, entre elas a mais famosa história do imaginário caboclo da Amazônia: a lenda do boto, que passou a ser uma das tradições da floresta mais festejadas do Sairé.
A crença do boto que vira homem em noites de lua cheia e seduz belas caboclas ganhou espaço em 1997 com a disputa dos botos Tucuxi e Cor de Rosa, as duas espécies do cetáceo habitante da bacia hidrográfica da
Amazônia. O Sairé começa oficialmente quando os condutores de pequenos barcos de Alter do Chão, conhecidos como catraieiros, saem em busca de dois troncos de árvore, que serão enfeitados com diversos símbolos do folclore
da região e assim permanecerão durante os cinco dias da festa – que tem início numa quinta-feira e se encerra na segunda.
Preservando alguns costumes da Igreja, como procissões e ladainhas, o arco em forma de proa de embarcação contendo os símbolos católicos é conduzido durante o dia, logo no início das festividades, pela autoridade máxima do Sairé, a Saraipora, representada por uma moça. Mas o ponto alto do evento é mesmo a disputa dos botos, realizada na arena de Alter do Chão, batizada de Sairódromo, com a apresentação de duas agremiações, uma representando o boto Tucuxi, e a outra o boto Cor de Rosa.
É a grande celebração “profana” dos festejos, contada e cantada em enredos desenvolvidos a partir de uma história de sedução, morte e ressurreição, assim como diz a lenda do boto. O Sairódromo se transforma em um espetáculo de música, dança e fantasia, acompanhado por uma enorme plateia que ajuda a traduzir a essência do rico folclore dos povos da floresta.
Ao longo da festa, os moradores da vila de Alter do Chão também apresentam diversas manifestações folclóricas da Amazônia, entre elas camelu, desfeiteira, lundu, valsa da ponta do lenço, marambiré, quadrilha, cruzador tupi e macucauá. Um grande almoço de confraternização, também conhecido como cecuiara, com pratos típicos da região amazônica, marca o encerramento diurno dos festejos. O termo original “çairé”, que depois passou a ser grafado também com “s”, tem origem nas palavras “çai erê”, usadas como saudação pelos indígenas Borari. Ele pode ser traduzido como “Salve! Tu o dizes”.
Atualizada em: 23/12/2024